Culto, devoção, espiritualidade
Quando se fala do Coração de Jesus, frequentemente encontramos os termos culto, devoção e espiritualidade. Não são sinônimos, é importante, portanto, compreender com precisão o significado de tais termos. Andrea Tessarolo, em seu livro “Theologia Cordis”[1] apresenta explicações que nos ajudam a clarear os significados. Culto, segundo o autor, do latim colere = cultivar, honrar, quer dizer reconhecer a dignidade, a importância, o valor que há efetivamente uma coisa, uma pessoa. O culto ao Sagrado Coração quer dizer que os atos de culto devem ser fonte de contemplação do Mistério de Cristo, e como conseqüência, fazer parte da própria vida, “deve haver coerência entre culto e vida” (Tessarolo A., pág. 26), como ensina a encíclica do papa Pio XII, sobre o culto ao Coração de Jesus, a Haurietis Aquas, de 1956: “ é o culto do amor que Deus tem por nós em Jesus, juntamente com a prática do nosso amor para com Deus e para com os homens” (n. 59).
Já a palavra devoção, no sentido original do latim, devotio, retoma o termo votum, e significa a dedicação pessoal a uma pessoa. A devoção é ligada a muitas práticas, a pessoa se sente ligada afetivamente a um santo ou a um mistério da fé. O devoto do Sagrado Coração procura honrá-lo com orações próprias, pratica a comunhão ou a adoração “reparadora”, recita o ato de consagração e outras (Tessarolo, pág 27). Aqui é colocada a exigência da atenção de não permanecer nas práticas devocionais que arriscam ofuscar a centralidade da pessoa de Cristo. A verdadeira devoção coloca em primeiro lugar a Fonte do Mistério, e tem como ponto focal a fé, a esperança e a caridade. Todos os exercícios espirituais devem orientar-se a tal fim e não serem desligados da vida litúrgica eclesial e dos aspectos doutrinais, para não cair no perigo do sentimentalismo intimístico.
“A espiritualidade, por outro lado, propõe um caminho em busca de Deus. É sentir-se tocado por Deus no íntimo de nós mesmos, de modo que inspire um certo estilo de vida”. (cf. Tessarolo, pág. 27). Indica um valor fundamental, ou um conjunto de valores importantes que alimentam e juntos, exigem determinadas atitudes espirituais da pessoa, caracterizando toda a sua vida espiritual e apostólica. Assim, em uma breve síntese, a espiritualidade do Coração de Cristo tem o seu centro e fundamento na pessoa de Cristo, filho de Deus feito homem e salvador. Mas é contemplado sobretudo no seu amor pelo Pai: “Para que o mundo saiba que eu amo o Pai” (Jo 14,31) e por nós, “Nos amou e deu a si mesmo por nós” (Ef 5,2.25). “ O movimento espiritual deve levar à unidade interior, a qual se obtém mediante uma adesão à realidade espiritual contida no Mistério da Salvação. É o Espírito de Deus, interior a todas as coisas, que nos une ao Mistério mediante uma interiorização. O Coração de Cristo, ou seja, a cena do lado transpassado, é eminentemente apto a suscitar e a induzir a este movimento de interiorização: o Coração de Cristo, de fato foi aberto pela lança, e o Senhor nos convida a ir até Ele: “Vinde a mim, vós todos, que estais cansados e oprimidos, e descanso vos darei. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,28-29)[2].
O Coração de Cristo...
Mas, o que significa coração? Em que sentido se refere à pessoa de Cristo e ao seu mistério? A palavra coração expressa a essência misteriosa do ser humano e indica aquela estância dinâmica da pessoa que ama, sente emoções e age, tornando visíveis e concretos os seus atos de bondade e de amor, ou vice-versa, de rancor e ódio. Enfim, é o símbolo da afetividade, e porque o amor é o motor fundamental de toda energia afetiva, o coração é comumente considerado símbolo do amor. Em linguagem bíblica, o coração é o “santuário interior”, o lugar do encontro do homem com Deus, é o espaço interior onde o homem acolhe a presença divina com a totalidade do seu ser. Referir-se ao coração de alguém, portanto, equivale a referir-se ao seu centro mais íntimo e escondido, à profundidade do seu ser, do qual nascem as decisões e escolhas de vida.
Falar do Coração de Jesus, então, quer dizer referir-se ao centro vital de sua pessoa humano-divina, ao núcleo do seu ser, à “sede” dos seus sentimentos que é o princípio determinante e unificador de todas as suas atitudes para conosco. O ensinamento da Haurietis Aquas é claro quando considera que o mistério da Aliança e a história da salvação se revela como mistério do amor divino. E esta história de amor encontra o seu ápice na manifestação do sentimento do Coração de Cristo: “Deus amou tanto o mundo, que deu seu próprio Filho”. Todas as manifestações do Pai são manifestações do amor do Filho encarnado, e, portanto, do seu coração. Assim a encíclica elenca a manifestação do amor de Deus na Antiga aliança, enumera as manifestações mais evidentes do amor de Jesus na sua vida terrena. “O coração do Verbo encarnado é considerado índice e símbolo do tríplice amor com que o divino Redentor ama continuamente o Eterno Pai e todos os homens. Ele é, antes de tudo, símbolo do divino amor, que nele é comum com o Pai e com o Espírito Santo, e que só nele, como Verbo encarnado, se manifesta por meio do caduco e frágil instrumento humano, "pois nele habita corporalmente a plenitude da divindade" (Cl 2,9). Ademais, o coração de Cristo é símbolo de enérgica caridade, que, infundida em sua alma, constitui o precioso dote da sua vontade humana, e cujos atos são dirigidos e iluminados por uma dupla e perfeita ciência, a beatífica e a infusa. (Haurietis Aquas, n. 27)
A espiritualidade do Coração de Jesus nos compromete
A espiritualidade do Coração de Cristo, portanto, não está centrada somente em um conjunto de práticas devocionais, mas em uma espiritualidade rica e exigente, centrada em Cristo, o Salvador do Coração transpassado. A humanidade contempla no seu Coração o modelo do homem novo, construtror da civilização do amor, do homem que vive a aventura interior de deixar-se permear e transformar pelo seu Espírito, tornando-se discípulos e apóstolos do amor, nas pegadas do seu Senhor. Cada fiel, a comunidade e toda a Igreja, tornam-se, assim, testemunhas “do Amor que se expressa em uma nova fantasia da caridade, para com quem sofre, para com o mundo ferido e escravo pelo ódio” (Documento Partir de Cristo, n. 4). Trata-se, portanto, de fazer próprios os sentimentos do Coração de Cristo e partícipes da obra da Redenção segundo a vocação na qual cada um foi chamado. Nesse sentido, as práticas devocionais preenchem-se de significado e valores em busca do Reino, a espiritualidade reparadora torna-se evangelizadora, missionária, no sentido de "reparar", trazer de volta quem está perdido, cansado, desanimado, desviado do caminho, conduzindo-o à verdadeira fonte. A espiritualidade de quem ama o Coração de Cristo está disposta a comprometer-se em transformar o mundo, em busca da justiça, do amor e da paz.
[1] TESSAROLO A., Theologia Cordis. Apontamentos sobre a Teologia do Coração de Jesus. EDUSC, Bauru, 2000.
Ir. Lorena Belinovski
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